21/08/2018 ás 00:45:31
“Eu sou moradora da região do Nordeste de Amaralina. Sou ativista LGBT. Sou transexual e negra. Sou a primeira trans a ocupar um cargo público no estado da Bahia, coordenava a pasta LGBT da Secretaria da Justiça. Também atuei no enfrentamento ao tráfico de pessoas aqui no estado. Sou atriz, poetisa. Tenho um programa de rádio comunitária intitulado Close de Favela e também organizo o quinto circuito do Carnaval de Salvador, que é aqui no Nordeste de Amaralina, o Mestre Bimba.”
Antes de ser questionada sobre qualquer coisa pelo HuffPost Brasil, é com essa metralhadora de títulos que Paulette Furacão recebe a reportagem, na porta de casa, no bairro do Nordeste de Amaralina. Com cerca de 200 mil habitantes, o complexo, que é formado por Santa Cruz, Chapada do Rio Vermelho, Vale das Pedrinhas e o próprio Nordeste, é considerado um dos maiores bairros de Salvador.
Quando tinha apenas 14 anos, vivenciou o assassinato de uma amiga travesti no bairro, em plena comemoração de Natal. “Foi aí que despertou, dentro de mim, esse sentimento. Eu acho que sempre esteve ali, mas, na época, a forma brutal com a qual ela foi morta, fez que eu e um grupo LGBT da região começássemos uma movimentação a respeito. Foi aí que o meu ativismo começou”, conta.
Paulette é resistência desde o nome que escolheu para si. “Eu sempre me envolvi nos movimentos, sempre fui muito curiosa. O meu nome, por sinal, vem da violência. Paulette e todas as outras ‘etes’, é uma forma de a sociedade carimbar as mulheres transexuais e as travestis, de dar nome à violência. Eu queria que o meu nome fosse Paula, mas entendi que adotar o Paulette funcionaria como uma resistência”, explica.
O complemento escolhido também não veio por acaso. O Furacão é uma grande perturbação na atmosfera terrestre — quando alguma região é atingida por um fenômeno como esse, os efeitos são rapidamente sentidos. “Ele vem destruindo a discriminação para uma nova construção. Vem desse meu protagonismo, de estar nos espaços, de estar desbravando os espaços, e de estar construindo políticas.”
Militante da causa, teve o trabalho reconhecido a partir das ações sociais desenvolvidas junto aos jovens do Nordeste. “No bairro, quando começamos a defender o discurso LGBT, as pessoas não acreditavam. Achavam que era ‘maluquice de viado’, mas depois começaram a compreender”, explica. Em 2012, a iniciativa das ações de conscientização dentro da comunidade ganhou o estado inteiro; foi nomeada para um cargo na Secretaria da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos da Bahia. A primeira transexual a ocupar um cargo público no estado da Bahia.
A nomeação foi muito bem aceita pela sociedade, ela garante. “Acho que foi pelo acúmulo de trabalhos que vinham sido desenvolvidos por mim, ao longo do tempo. Houve um grande debate nesses setores, foi muito importante. Quando eu tomei posse, a Bahia amargava a posição do estado mais perigoso para os LGBTs. Em 2013, a gente já não conseguiu sair nos 10 primeiros. A movimentação começou a fazer parte de todos os setores: nos movimentos sociais, nas Secretarias de Estado e na Academia”, enumera.
Realizou visitas a penitenciárias, brigou pelo direito do uso do nome social, avançou em alguns pontos do direito à educação e fez de tudo para espalhar para o maior público possível os métodos de prevenção às doenças sexualmente transmissíveis. “Eu me sinto na obrigação de ajudar, de fazer parte disso, a partir do momento que eu sou diariamente abordada por LGBTs, que clamam por socorro, porque ainda não acreditam nas instituições.”
Paulette conta que a população LGBT no bairro onde mora é imensa. E, “por incrível que pareça para quem olha de fora”, o lugar é uma das regiões na capital baiana onde mais se respeita o grupo. “O índice aqui de assassinato e violência LGBT é muito baixo. Ao contrário, as pessoas sempre se mobilizam nas paradas LGBT, é impressionante como as pessoas cis participam ativamente do nosso movimento”, reconhece. No Carnaval, por exemplo, o “Trio Elétrico da Prevenção” é o segundo a desfilar — só fica atrás do bloco que dá nome ao circuito.
Depois de alguns anos na vida pública, a “metamorfose ambulante”, como se autodenomina, resolveu migrar para outro canto — “não consigo passar mais de 3 anos fazendo a mesma coisa”. Foi convidada pela rádio comunitária para comandar o Close de Favela, programa voltado para a temática LGBT. Topou na hora. Quem sintoniza na 87,9, às 15h de todos os sábados, recebe uma enxurrada de conteúdo de conscientização, com direito a muito bom humor e irreverência.
“Toda semana a gente debate algo que seja relevante ou pertinente dos anseios desse grupo, mas o foco é no trans. O T é a letra mais invisível da sigla. Sempre foi e continuará sendo por muito tempo. Infelizmente, em muitos sentidos. No acesso à educação, ao trabalho, à saúde, à família, à afetividade, tudo. É a base da pirâmide da discriminação”, comenta.
Ao lado de Igor Leonardo, que cursa bacharelado em Gênero e Diversidade na UFBA, comanda o programa religiosamente. “Temos vários quadros. O Fala Gênero, que é mais pra conscientizar, o Unicórnio Cartomante, que é comandado por um menino lá de Santa Catarina que fala sobre astrologia… A gente tenta mesclar os assuntos. É um programa que tem sua leveza, mas é sério e leva conhecimento à população. A gente já começa a ser uma nova ‘linhagem’ de mulheres trans que debatem coisas sérias, além do risível.”
Além de ser reconhecida nas ruas da comunidade, o programa tem alcançado outros estados e até outros países — graças à transmissão simultânea em formato de live no Facebook. “Muitas vezes pessoas cis vêm falar comigo na rua sobre o tema que a gente falou. Eu saio desse lugar de vulnerabilidade e passo a pertencer e protagonizar. Tenho estado muito feliz com isso. Acho que é o que a gente vem buscando desde que o movimento começou”.
“Ainda 95% das transexuais sobrevivem da prostituição, e não é uma questão opcional. A gente quer romper com esse quadro.”
Alguém duvida que ela consiga?
Fonte: HuffPost Brasil